sábado, junho 09, 2007
PÁGINAS DA REVOLUÇÃO
Lá pelos idos de 64 eu trabalhava como extensionista rural no municipio de Getulio Vargas, no Alto Uruguai. Na época um dos métodos de trabalho da extensão rural era organizar grupos de produtores rurais e transmitir-lhes algumas técnicas agronômicas que, imaginavamos, poderiam melhorar a exploração agrícola. Este trabalho era feito através de reuniões e das chamadas demonstrações de método, onde se demonstrava na prática, por exemplo, como vacinar um porco contra uma tal de peste suina. Um dia eu chego em uma comunidade onde estava marcada uma reunião e não tinha ninguem. Soltei um ou dois foguetes que era a forma de avisar que tinhamos chegado e a reunião ia começar. Ninguem. Fui procurar o colono que era o encarregado da organização do evento. Constrangido ele me contou que o capelão da igreja havia dito para os colonos que nós estavamos tentando formar um grupo dos onze naquela localidade. O grupo dos onze era uma criação do Brizola para, como diriamos hoje, organizar a sociedade civil. Naquela época a Igreja estava muito preocupada com o comunismo e não se falava ainda na Teoria da Libertação. Pouco depois, em março, eclode a gloriosa revolução. Aquela suspeita levantada pelo padre local poderia vir a me trazer problemas, principalmente pelas idéias malucas que passaram a colocar na cabeça do guarda da esquina. A minha preocupação tinha alguma lógica. Um dia vi um coitado de um colono desfilar algemado pela cidade. Seu crime: a origem russa. Ele devia ter seus setenta anos e provavelmente havia saido da Russia por causa do comunismo, mas foi o suficiente para o nosso guarda da esquina considera-lo subversivo. No interior o que valia era a delação. Os inimigos politicos do prefeito delataran-no como comunista e ele foi colocado numa das primeiras listas de caçados. E o prefeito podia ser uma porção de coisas, menos comunista. Durante algum tempo a nossa gloriosa Brigada Militar ficou sediada em Passo Fundo e encarregada de conter a subversão - a ferro e fogo. Mesmo quem em algum momento havia ficado preocupado com as idéias de Jango começou a ver que estavamos metidos numa encrenca maior. Assim é com as ditaduras. Elas começam devagar, muitas vezes com grande apoio popular, mas com o passar do tempo, aqueles que tem capacidade de pensar vão vendo que cairam num engodo. Exemplo recente: nosso querido e popular vizinho - Chávez.
Pois esta semana achei um filme formidável dentro desta temática- Páginas da Revolução - O filme é baseado no livro Sostiene Pereira, do escritor italiano Antonio Tabucchi. Marcello Mastroiani, no seu ante-penúltimo papel, interpreta Pereira, editor da página de cultura do jornal Lisboa. O cenário é a Lisboa dos anos 30, mais precisamente 1936. Antonio de Oliveira Salazar é o ditador de Portugal, em Espanha acabou de iniciar a Guerra Civil Espanhola, Hitler e Mussolini já estão no poder e apoiam Antonio Franco que ainda em 36 vai vencer a Guerra Civil e transformar-se no Generalissimo Franco. Portugal está envolvida pela sua vizinhança com a Espanha. Revolucionários de uma corrente e outra ultrapassam a fronteira para fugir ou perseguir adversários. Afastado de tudo isso, Pereira tem a idéia de preparar necrológios de personalidades ainda vivas, para, como diz ele, não ser pego de surpresa. Pereira tem uma ligação muito forte com a morte. Ele vive sózinho. Ou melhor, com o retrato de sua mulher morta com quem ele conversa diariamente. Quando lê uma cronica sobre a morte ele fica impressionado e procura contatar o autor para contrata-lo para escrever os necrológios antecipados. Marcam encontro num local onde está sendo realizado um baile popular. O diretor Roberto Faenza usa o baile para mostrar a presença do fascismo em Portugal. Crianças uniformizadas ao estilo juventude Hitlerista, discursos, e o povo dançando e brincando como se fosse uma situação normal. Pereira conhece então Monteiro Rossi (Stefano Dionisi) que aceita o convite para escrever no Lisboa. Monteiro apresenta sua namorada Marta (Nicoletta Braschi) que se manifesta imediatamente como revolucionária e contra a ditadura de Salazar. O primeiro necrológio de Rossi é uma peça revolucionária. Pereira paga o artigo mas diz que é impossivel de publicar. A censura jamais vai aceitar. Ele não toma partido apenas acha que não deve publicar.
Andando em um bonde Pereira assiste a policia perseguindo populares. Em sua casa ele tem a presença viva da delação, na sua zeladora, que controla tudo o que ele faz. No café Andorinha, onde ele sempre vai tomar a sua limonada com açúcar, muito açúcar, ele conversa sempre com Manuel (Joaquim Almeida), o barman. É uma sacada irônica ótima. Ele é editor de um jornal mas é Manuel quem lhe informa o que está acontecendo nas ruas, coisas é claro que não são publicadas. Manuel sempre lhe diz que o Lisboa deve publicar a verdade. Numa clinica de emagrecimento, onde Pereira procura perder alguns quilos, ele conhece o Dr Cardoso (Daniel Auteuil) que lhe fala sobre sua teoria da congregação de almas e do "eu dominante". Nas conversas com Pereira, onde este coloca as dúvidas que está começando a ter sobre a situação política e religiosa, Dr Cardoso diz que o eu dominante de Pereira é o conservador mas que outro eu pode estar surgindo e assumir a posição do eu dominante e isto vai alterar a forma de agir de Pereira. Então aos poucos nós vamos assistindo as mudanças que vão ocorrendo em Pereira até que um evento marcante força-o a tomar uma decisão.
É um filme muito bonito que de forma muito sutil mostra como a sociedade pode ser levada para as maiores estultices sem se dar conta.
Até a próxima postagem.
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